Além de um tempo belicoso, trovejando

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Perfil do Rio



O nosso corpo é um rio moldável
Novalis



Além de um tempo belicoso, trovejando
colisões frontais de nuvem e rocha para
cima, fenda e avalanche, país de trolls,
mortal para quem respira, o rio

transforma-se em paisagem abaixo da linha dissipada,
onde pequenos lagos jazem congelados sob sisudos circos, 
sinos de cabra, quebra-ventos, varas de pescar, 
país de lâmpadas de mineiro, já tão à vontade com

o semblante e os gestos que se tornam a sua bondade,
em caudais de água, ainda anónimos, passíveis de saltar,
descendo uma escada íngreme, uma região de comportas 
e turbinas, em espirais possíveis de explorar.

Em breve de tamanho notável e causa de
sujas disputas entre agências rivais,
descendo uma escada íngreme, uma região de comportas 
e turbinas, mergulha obstinado,

espumando por um desfiladeiro sinuoso entalhado em
estratos, encurralado entre rochas que cobrem o céu,
ladrão-barão, corda de reboque, país de estradas de portagens,
pesadelo de comerciantes.

De contrafortes desembocando, agora em meandros silenciosos, 
agora em tranças esvoaçantes, vagueia por uma senil planície, 
bem definido, castelo e prensa de sidra,
o seu progresso real

temporariamente cortejado por estranhos álamos,
depois por chaminés: levado para esfriar e lavar
a retorta, martelo a vapor, país do gasómetro,
vai mudando a sua cor.

Poluído, coberto por vigas, cercado por betão,
agora divide uma poliglota metrópole,
fita de cotações, táxis, bordéis, país de luzes da ribalta,
à la mode sempre.

Ampliando ou escavando as fases da lua,
turva com manto de lixo pulverizado, através de
um país mais plano, mais monótono, mais quente,  
um país de máquinas de algodão
atravessa, aproximando-se

da marca da maré onde adia a majestade,
se desintegra, e pelos pântanos de um delta,
barcos à vara, espingardas para abater pássaros, 
país de plantações de cogumelos,
esgota-se por fim em

acto de entrega, definhamento, expiação,
num vasto agregado amorfo que
nenhuma criança atraente e mimada
jamais sonhou, fora do país,
imagem da morte em cada

gota de orvalho esférica da vida. Terríveis
monstros, acreditam os nossos contos, 
podem ademais se transformarem
tal como a água, a mãe altruísta 
de todos esses cujo molde é especial.


Julho de 1966




W. H. Auden | Selected Poems, New Version
Editado por Edward Mendelsen
Vintage Books, Random House, 1979.
Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa 

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