Mensagens

Dinosauria, Nós

Nascidos assim No meio disto Quando as caras de giz traçam sorrisos  Quando a Sra. Morte dá gargalhadas Quando os elevadores entram em colapso Quando os cenários políticos se corrompem Quando o rapaz do supermercado possui diploma universitário Quando o peixe de conserva cospe a presa oleosa Quando o sol coloca a sua máscara Somos Nascidos assim No meio disto Nestas guerras cuidadosamente loucas Na visão das janelas de fábrica quebradas de vazio Em bares onde as pessoas já não falam umas com as outras Em lutas com punhos que terminam em tiroteio e facadas Nascidos no meio disto Em hospitais tão caros que é mais barato morrer Entre advogados que cobram tanto que é mais barato alegar-se culpado  Num país onde as prisões estão cheias e os hospícios encerrados  Num lugar onde as turbas promovem tontos a ricos heróis  Nascidos no meio disto Caminhando e vivendo através disto Morrendo por causa disto Calados por causa disto Castrados Debochados ...

peço aos invisíveis

peço aos invisíveis Peço aos invisíveis Que guiam os nossos pensamentos pelos seus Que transportam as nossas vidas através das terras da morte – Anjos & sábios & agentes celestes - Peço o matrimónio do sol C? a lua No meu duplo-canceroso horóscopo Coragem para me retirar do poço Onde as forças solares não podem entrar Que Pã pare de turvar os meus riachos límpidos - deuses Antigos devem ser trancados - E que o altar magnético Com incenso purifique o ar E que não haja bestas lunares Dançando nos meus bosques Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

Não recomendaria o amor

  Não recomendaria o amor A minha cabeça parecia esfaqueada por uma coroa de espinhos, mas brincava e andava de metro e escondia-me nas casas de banho da escola para me masturbar e escrevia secretamente sobre o inferno da adolescência porque eu era "diferente", o primeiro e o último da minha espécie sufocando sensações agudas em piscinas e balneários, viciado em lábios e genitais, louco por nádegas que Whitman e Lorca e Catulo e Marlowe e Miguel Ângelo e Sócrates admiravam e escrevi: Amigos, se desejam sobreviver, não recomendaria o Amor Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

magnificat

  magnificat Et esultavit ... não, Johann Sebastian, não no fraco magnificat que (doentiamente) tecemos, uma pequena bandeira do nosso louvor. Isto não é para nós. Susce pi t Israel ... Recebeu-nos, ó, com cruel misericórdia na noite, como ladrões, como leões caídos. A nossa exultação não é livre. Mas presos como Prometeu à rocha, o nosso fígado devorado pelo abutre de Deus, vimo-lo derrubar os humildes, exaltar os poderosos - Abraão agrilhoado à rocha, coberto de lama. Ó Pai Abraão, o Espírito Santo, o teu louvor, a tua glória, olha! olha para a semente do pai, os lombos ressequidos e o credo de absinto! Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

cena de rua

  cena de rua Por orientação desleixada ou crescimento, esses adolescentes que se agarram às sombras nos degraus da central estão mortos. O seu riso entrecortado, distorcido pelo que entendem mal, entristece a aparência da rua abandonada como o seu futuro. E todos os planos cívicos e parques e parques infantis arborizados são um suicídio insultuoso para esses rostos já culpados. Que (sinalizados pelos meus calcanhares) como astutos elfos do mal se erguem dos seus rudes abraços gotejando censuras obscenas. Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

deus abençoe a amérlca e lorca

  deus abençoe a amérlca - e lorca Leitura de Lorca em sala pública - A sua revolta fundamentada contra a razão como pendor social, Recusando a sindicalização da poesia: Rejeitando o décolletage surrealista e o Selo de aprovação do grupo: procurando o orgânico Numa era de emoção inorgânica :Tenho pena do homem que está à minha direita, olhos míopes a cinco centímetros de Vida E daquele com o bigode de aço E do Guia de A c tividades ao Ar Livre : e do adolescente glandular Com os movimentos incertos e o olhar erótico vesgo De confusão: que de repente: dos seus mundos divergentes E obsessões que se entrechocam: como nadadores, todos se erguem Por um momento: cabeças submarinas: captaram ondas Sonoras da rua do comércio e bandeiras a ondular Kate Smith cantando "Deus Abençoe a América". Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

A Mãe e Os Mortos

  A sua mãe preferia o Ouija para invocar os mortos, bajulando, arrulhando para o quadro falante colocado na mesa da cozinha, para o pequeno portal na prancheta, as letras que ele percorria formando palavras, uma lengalenga pouco clara. Ela diz que ouve, não, sente-os mais facilmente do que isso, os mortos não identificados, o meu irmão mais próximo do que era em vida, mais perto do que quando ela o carregava, e à sua miséria azul, para dentro da sua casa - agora é uma proximidade que não assusta nem pressagia, a sua chegada é uma coruja vinda das árvores derrubadas pela noite tão silenciosa quanto a sua própria sombra, ou um corpo astral, e ela não saber se são as paredes ou a própria distância que se diluem - ou o mundo - que o permite. Claudia Emerson, impossible bottle: poems , Louisiana State University, 2015. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

O Apagão

  Tempestades de Junho e uma greve algures destrói a casa, a rua, os candeeiros, toda uma pequena cidade escurecida, o seu deslizamento rápido numa noite subitamente ruidosa com chuvas tardias, rãs-árvores, cigarras, um noitibó - com a forma como a noite pensa. Um dia, depois dois, o sol rude como a beleza, e ainda ela recusa sair de casa. Encharca os pés na água da torneira, ela própria com a devoção diária, o jornal, o seu horóscopo, dizendo a si mesma que as coisas são como são, da forma como sempre fez. A televisão que era a sua distração do mundo torna-se o espelho mais vago; O calor é assombroso, os talheres e as porcelanas quentes ao toque como se tivessem saído da máquina de lavar louça. Será por isso - o seu súbito desespero - pelo que não pode suportar, ou pelo facto de não conseguir suportar? Claudia Emerson, impossible bottle: poems , Louisiana State University, 2015. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

O Poço

  Quando o conheci, já era uma estrutura de puro sentimento, mais um resquício do que um lugar, cobrindo a antiga e negligenciada profundidade que conduzia para a água. O tio da minha mãe, cuja voz não me lembro de alguma vez ter ouvido, construiu o muro alto sabendo que se afundaria por causa dos plátanos - caçadores de água fantasmagóricos - aparentemente fora de lugar, e um poço onde devia ter notado haver demasiados fetos. A mesma água da casa mais tarde ficaria clara por comparação, tépida, domado pela torneira e o cano, a bacia e o ralo, as nossas mãos gretadas sempre nele, debaixo dele. Não é assim tão difícil compreender agora o que foi durante tanto tempo irreconhecível, um dado adquirido, essa fonte como ausência de algo, o afastamento de tudo isso - o cano, a casa, nós - tudo isso, tão perfeito como se fosse invisível. Claudia Emerson, impossible bottle: poems , Louisiana State University, 2015. Versão Portug...

A Cicatriz

  O desmaio de que ela não se consegue lembrar - ou a pancada do seu rosto contra a borda da mesa - apenas o despertar, o sangue no seu olho, na sobrancelha, o rosto da sua mãe tão próximo do dela que não a conseguia ver. A solução: encher o corte com fuligem do fogão - um rápido estancamento, a fornalha ainda quente com brasas vivas. O sangramento pararia, e a ferida cicatrizaria até ficar – de um pálido azul, fazendo lembrar uma pestana tatuada, embelezada como se fosse algo que ela pudesse ter escolhido para si própria. Ela não precisa de me o contar para que eu veja o calor cintilante de uma manhã, os quartos da casa - a sua mãe a vê-la da forma como ela me vê através desse peitoril indelével de cinzas - e atrás dele o fogo que deu ao olho-fogão, a sua aura mais brilhante de sempre. Claudia Emerson, impossible bottle: poems , Louisiana State University, 2015. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

O Terremoto

  Ela pensa primeiro não na terra, mas em si mesma, algo que acontece apenas ao seu corpo, algum tipo de feitiço, uma convulsão. Mas os quadros nas paredes agarram-se também, as próprias paredes num tom nervoso, o súbito embalar do chão. A porta parte a fechadura e abre-se. Ela sabe, ela só sabe o que é quando pára, com uma clareza chocante, do modo que nada de vivo jamais fez. Claudia Emerson, impossible bottle: poems , Louisiana State University, 2015. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

Corrente Corrente Corrente

Trinta anos depois do tempo da virgem: um sobrinho era o portador dos anéis, os anéis atados com fitas lisas sobre a pequena almofada de cetim em que os levou. Fingindo rezar, observei formigas rastejndo nos seus sapatos engraxados. O pastor enumerou quem morrera há muito tempo de cancro. incluíndo o meu irmão; nessa manhã chegara drogado, com o cabelo comprido, óculos de sol à aviador com lentes ofuscantes; e o cunhado e os sogros, o meu próprio pai, todos mortos, agora. A amiga que mais tarde colocaria uma almofada sobre o rosto e dispararia sobre si através dela, sabia o que eu queria e enviou-o embrulhado em papel de talhante: um vestido de noiva Mexicano, branco sobre branco bordado, pontos densos, intrincado - a assinatura da costureira, uma única madeixa preta do seu cabelo cosido no jugo do casamento. Foi, de facto, perfeito. Isto é. O ar de Abril está mais frio que do nunca. Danço de corrente em corrente em corrente antes de a tirar de novo e aliment...

Kiwi

O marido tinha uma pequena caixa de madeira onde guardava trapos de polimento e pincéis, latas planas de esmalte com a imagem de algo semelhante a um pássaro nas tampas. Sábado à noite era quando ela a retirava do armário do corredor para polir os melhores sapatos para ir à igreja, e foi aí que  teve a ideia de o fazer - criar uma tela a partir de um lençol ou de um das suas camisas de trabalho quase desgastadas. Aí, pintaria uma tradução do que tinha visto reflectido na janela da cozinha, o seu rosto era o vidro através do qual tinha de olhar, e o que podia ver do mundo, via através dele, indivisível do pasto das traseiras - as suas maçãs do rosto, o seu cabelo de vassoura, a linha das árvores um pico de viúva, tudo isso lançou uma e outra vez em tudo que tinha de - preto e castanho, orvalho brilhante en desfile, lábios sangue de boi.  E quando  voltou a colocar a tampa , não pôde deixar de considerar o porquê da s...

Depressa

  As suas filhas nasceram depressa, três seguidas, as duas mais velhas a decepção comum que a maioria das raparigas é para os pais, a terceira uma filha de Deus , disse ela; um estúpido-pássaro , declarou, lento como uma corrente através da lama . A casa que nunca deixaria ficava na rua mais íngreme da cidade, as raparigas mais velhas aí aprenderam a ser rápidas em patins e trenós, e depressa tinham idade suficiente para homens casados, e por tal eram tão fáceis, rápidas e agradecidas - sem limpeza, sem lutas, apenas carros e a inclinação íngreme de uma noite de verão, e a mentira rápida que uma hora pode ser, a mais astuta depois de cuidar dos seus filhos, a estrada onde estacionaram,  a única que tinha todas as curvas - veados mortos nas valas - e seguiram-na como se estivessem a arrombar uma casa só por diversão, como se estivessem a roubar o ar de outra pessoa, a escuridão de de outra pessoa, de que nem a mulher mais...

Clima

 para Kent Disseram que não tinham categoria para isso, uma coisa híbrida que baptizaram e enumeraram de qualquer forma. Os meteorologistas não conseguiram deixar de ser delirantes; o seu centro maciço e lento, o seu corpo nascido no oceano vindo para o interior em corpos, um inverno, um tropical, uma coisa conjugada que jamais ninguém vira; quão saudável era, maravilhavam-se, quão determinada - parte ciclone, parte nevão, parte furacão, tornado, tudo isso, tudo isso se aplica. Apontaram para mapas, medições e gráficos; lutaram para a localizar e prever o que poderia fazer. São já inúmeras as interrupções, encerramentos. Aqui catalogaste, armazenaste o que poderíamos de precisar - pilhas, velas, fruta enlatada, água engarrafada, fósforos, o rádio transistor. Ouvimos o vento; esperamos. Estavas mais inquieto do que eu estava, saindo repetidas vezes para a varanda, para ver por ti próprio, inclinando-te para ela, como se ...