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Dinosauria, Nós

Nascidos assim No meio disto Quando as caras de giz traçam sorrisos  Quando a Sra. Morte dá gargalhadas Quando os elevadores entram em colapso Quando os cenários políticos se corrompem Quando o rapaz do supermercado possui diploma universitário Quando o peixe de conserva cospe a presa oleosa Quando o sol coloca a sua máscara Somos Nascidos assim No meio disto Nestas guerras cuidadosamente loucas Na visão das janelas de fábrica quebradas de vazio Em bares onde as pessoas já não falam umas com as outras Em lutas com punhos que terminam em tiroteio e facadas Nascidos no meio disto Em hospitais tão caros que é mais barato morrer Entre advogados que cobram tanto que é mais barato alegar-se culpado  Num país onde as prisões estão cheias e os hospícios encerrados  Num lugar onde as turbas promovem tontos a ricos heróis  Nascidos no meio disto Caminhando e vivendo através disto Morrendo por causa disto Calados por causa disto Castrados Debochados ...

lendo os meus poemas em universidades

  Lendo os meus poemas em universidades deslumbrado e estimulado por pernas  nuas  e musculadas no campus jovens garanhões peludos e aprumados e boas maneiras quando preencherei este vazio sexual plateias à espera de chegar à bebida que atordoei e deambulando entre eles supostamente livre e solto sorvendo bebidas não nutritivas não beliscando rabos não apalpando virilhas o próprio modelo de um imbecil quero que venham ter comigo (delírio de grandeza) vou ler esse livro sobre auto-hipnose tornar-me um bardo desenfreado a gritar: Abaixo as calças! ah, seu pervertido, quando é que vai rebentar as fechaduras das portas! São Francisco, 3.iii.72 Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

uroboros

  Come cru quem quer que encontre no caminho, come os pulmões dos homens sábios contenta-se em viver de corações alegra-se se puder devorar aqueles que estão a fazer amor cobiça casais que se espremem contra cartazes na parede do metro cambaleia pela Mão Esquerda de Deus abre caminho através do gelo nas ruas passando por placas de computador e letreiros de cinema passando por bêbados cambaleantes traça uma sombra como um patinador artístico esfrega o pénis contra a própria sombra e jorra do próprio ânus as suas botas fazem um som  de trituração contra belos dentes jovens ri-se enquanto parte o crânio de rapazes rasga raparigas ao meio e engole os seus intestinos o seu rosto reaparece como o de um fantasma nas janelas de edifícios trancados passa por um homem a lavar o vómito do passeio passa por um homem que urina contra um banco passa por  um homem a chorar num bar passa por si sem se reconhecer engole-se e engasga-se é   aquele que devora o própri...

o velho poeta ouve

  O velho poeta ouve O Lago dos Cisnes e lembra-se de dançar como quando era magro e vigoroso. Levanta-se, executa uma pirueta precisa, roda novamente, fica tonto, quase tropeça mas consegue de alguma forma um gracioso arabesco. O espelho e o silêncio no seu quarto solitário não aplaudem. A música, porém, continua a dilacerá-lo como um animal belo e mortal perante o qual se sente indefeso. Geme, recordando em excesso, e desliga a música. 23.vi.80 / Monte Rio Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

como posso alcançar-te?

  chamo através do espaço as minhas antenas astrais ouves as minhas palavras através do espaço nós não nos alcançamos um ao outro alcança-me não nos podemos conhecer o motor ronrona lá fora vejo um carro sem olhar depois pergunto se vejo um carro o meu peito está pesado a minha cabeça está cheia de fumo a minha cabeça está a abanar como a de uma boneca buu, estou a fumar, buu espero o pássaro de obsidiana no fumo de uma asa a voz é alterável o corpo é alterável a mente é alterável a vida é alterável Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

quando aprenderemos?

  É um lugar triste e os invernos são solitários. A chuva destrói as suas defesas, arrancando-lhe o sorriso dos dentes. Grito com os sacos de lixo de plástico, enfurecendo-me sem sentido porque a loiça fica suja como a vida e não consigo aceitar esse facto terrível. Refugias-te nas cores do arco-íris da tua guitarra e a tristeza da imperfeição transforma-se milagrosamente em canção. Com a habilidade emocional do cantor folk, agarrando-se ao penhasco da música, penduras-te nas notas acima do fosso. Entro no teu quarto com vontade de partilhar os sons que transformam a nossa doença, a minha boca a estalar de amor. O meu sorriso volta a crescer quando os meus lábios formam palavras em torno da música e os nossos sentimentos fluem mais suavemente para o espaço de onde a chuva lenta recua. Harold Norse,  In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

onde estão esses poemas com que sonhava?

  Onde estão esses poemas com que sonhava? volumes inteiros de proporções épicas de uma só vez numa página de pergaminho memorizados num ápice não ditados mas  revelados ! Aos meus olhos sonhadores como um grande plano de um filme sem dúvida a maior escrita de sempre ao lado das quais as tábuas de Naacal eram estenografias da pré-Idade da Pedra Estou convencido! Esses poemas eram dos deuses que brincam com o tempo como as crianças brincam com o jogo de damas A Eternidade nas mãos mil páginas por um segundo de fabulosa Escritura dourada! ao acordar percebi que nenhuma palavra podia ser compreendida nesta Forma preguiçosa Harold Norse,  In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

a loucura da raça branca

  Vejo-te agora uma máscara de múltiplas cabeças os olhos frios através de capuzes brancos como outrora te vi no Alabama no estaleiro da Mobile a construir navios Liberty para combater o terror nazi uma súbita agitação atrai-nos da chapa metálica para o estaleiro uma multidão enlouquece gritando de ódio espancando um velho grisalho com punhos canos de chumbo o seu cabelo negro arrancado o seu rosto negro esmagado  o seu sangue negro derramado os seus olhos negros atordoados a sua alma negra esmagada a sua vida perdida o meu rosto branco chocado a minha voz branca troçava da minha alma branca atordoada a minha esperança branca destruída pela loucura da raça branca 1941, Mobile, Alabama Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

todos os artauds

Centenas de Rimbauds por todo o lado em cafés lavandarias bares nos cruzamentos de esquinas exigem reconhecimento imediato falam com intensidade telepática acabam pedindo esmola Há mais Rimbauds por hectare quadrado do que Baudelaires no meio boémio mas quando cheguei ao encontro de leitura de poesia contei distintamente 365 Artauds um por cada dia do ano A França faz um bom negócio com Artauds Cada Artaud acusa os outros de serem impostores cada um exibe cicatrizes no pulso sorri desdentado com desprezo aquilino ostentando uma loucura fingida como uma medalha   Purple Heart Quando comecei a ler levantaram-se como um só homem e gritaram acusando-me de pederastia magia negra e feitiços católicos todos os Artauds fizeram um barulho infernal enquanto mal conseguia continuar Quando terminou saí trémulo para o meu café preferido e vi-me sozinho ignorado por cerca de uma dúzia de Artauds no balcão que comunicavam entre si numa especíe de jargão cabalístico composto por e...

parapoema

  na visão sangrenta do sonho uterino choraste no momento recém-nascido uma lua de coxas como uma parede na luz brilhante do rio surge o momento contorce-se num homem rei vem ele correrá nas feridas entre as pernas de um beijo vão morto em táxis em cantos torturados o santo flui para o sonho do caminho do sol o útero que gerou pequenas mortes e o centro sagrado deslumbrante escondeu de mim o lugar de onde ouço gritar o trigo a mãe com o sexo trespassado por espinhos de lombos escuros carregou o homem-mãe solitário e cortado embalou-o num silêncio molhado a guerra constrói o seu quarto sangrento e a mãe é a perdição Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

no se puede vivir sin amar

  Como poderíamos saber que esta praça albergaria uma morte tão frágil quanto a teia de uma aranha Que as paredes verdes vomitadas de um hotel barato estrangulariam como um torno esta coisa entre nós? A chuva fria do inverno, a gripe e o turista reduzem as nossas escolhas a um movimento errado Nunca chegaremos às Canárias, Las Palmas ou Tenerife, praias brancas, coqueiros na costa de África, nada resta além da frágil teia que cada um deve tecer sozinho. Adeus, miúdo, vou para casa. 5.i.79 / barcelona “ Non se puede viver sin amar” Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

não sou um homem

  Não sou um homem. Não consigo ganhar a vida, comprar coisas novas para a minha família. Tenho acne e um pequeno problema. Não sou um homem. Não gosto de futebol, boxe e carros. Gosto de exprimir os meus sentimentos. Até gosto de colocar um braço à volta do ombro do meu amigo. Não sou um homem. Não vou desempenhar o papel que me foi atribuído - o papel criado pela Madison Avenue, Playboy, Hollywood e Oliver Cromwell. A televisão não dita o meu comportamento. Não sou um homem. Uma vez, quando disparei sobre um esquilo, jurei que nunca mais mataria. Desisti de comer carne. A visão de sangue deixa-me doente. Gosto de flores. Não sou um homem. Fui para a prisão por resistir ao recrutamento. Não luto quando os homens a sério me espancam e me chamam bicha. Não gosto de violência. Não sou um homem. Nunca violei uma mulher. Não odeio negros. Não me emociono quando a bandeira é agitada. Não penso que deva adorar a América ou deixá-la. Acho que me devia rir dela. Não sou hom...

verlaine aqui morreu

  Quantas vezes passei por esta casa observando as cortinas contra as portadas e a placa na fachada cinzenta marcando o ano da tua morte Verlaine neste quarto por cima da livraria da Rue Descartes - rua doente de tristes clochards ... Dei por mim a pensar no teu furacão de lixo e lama no barulho de cafés e autocarros e paredes a pingar com aquele paraíso sem devoção no final perguntando-me quem está por trás daquelas janelas fechadas uma lavadeira talvez alguém para quem o teu nome é apenas um nome preso como tu nesse banco de areia onde as viagens terminam Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

uma questão de identidade

  não consigo andar na rua sem que algum pulha fardado questione a minha identidade QUEM SOU EU? poeta? espião? viciado? viajante? ou talvez santo? O meu passaporte americano?? a águia põe um ovo podre na minha maçã-de-adão o receio da polícia europeia levanta a questão da falsificação. sou observado mais de perto onde mora? o que está aqui a fazer? manuseiam o documento - relutantes em deixar-me passar. pode escapar à burocracia do seu ódio b em, siga em frente ! p rocuramos alguém que PODERIA ser você... (porque é que não estás bem vestido? pensam) sorrio tão porreiro quanto posso Paris, 1960 Harold Norse, In the Hub of Fiery Force: Collected Poems 1934-2033. Thunder’s Mouth, 2003. Versão Portuguesa © Luísa Vinuesa

natura naturans

O Inverno, com as suas gigantes sugestões de ser definitivo, de empurrar, ousadamente, com novos significados, chega à hora marcada: ainda que os desprevenidos nas cidades se amontoem com as suas dúvidas, e mesmo o odor amigável do carbono na lareira não ajude o cínico, e os momentos estranhos sejam demasiado reais para os deprimidos nos seus pequenos quartos. Onde os presságios são mais tristes, entre espirais de aviões que uivam para a morte, o horror agudiza-se, uma pedra de gelo moldada numa flecha de morte. Isto aponta, sem crítica, para o cerne de tudo: para a praça fria, para o lago de brincar com as crianças, os fotógrafos, para o círculo sob a estátua ignorada, e mesmo no centro morto, o eixo onde a vida parece mais centrífuga: as ondas nervosas eriçadas do comércio. E a pergunta repetida da estação, não dita, expressa como se fosse um bêbado nos olhos enormes e lentos, nos lábios desajeitados, lentos e trémulos, de um continente ferido: devo ous ar recuperar-me...